2006/10/01

Francisco...


Tinha somente 12 anos, o pequeno Francisco. Revelava em cada acto seu uma maturidade de um adulto, todo ele era criatividade, todo ele era um sonho, um sonho de criança… Fazia da vida um jogo. Fazia perguntas a si mesmo, e passava o tempo a tentar obter respostas para as mesmas que se tinha proposto resolver. Formulava questões cuja resposta era, após alguns minutos de reflexão, relativamente trivial; formulava também perguntas para as quais passava imenso tempo à procura da resposta e ainda algumas que nunca chegou a encontrar solução. Francisco tinha um tio que admirava muito, chamava-se António, era escritor. António formara-se em advocacia era uma personagem taciturna por natureza. Era daquelas pessoas sombrias, com um semblante profundamente pesado, tinha apenas 45 anos e uma aparência de 60, falava com voz pesada, pausadamente. Dava a sensação que passara a vida inteira dentro de uma prisão invisível o sorriso nunca se ouviu falar. No entanto António era uma excelsa pessoa, responsável, inteligente consciente e amigo do próximo… Conhecendo o tio como pessoa Francisco não entende a tristeza que António carrega e dirige-se perguntando

--Tio… Tu tens amigos??

--Sim tenho… Tenho-te a ti Francisco…

--Pois… Mas e sem ser eu? Não gostas de pessoas??

--Gosto Francisco… Porque perguntas isso??

--Andas sempre triste… Nunca te ris.. Não gostas de viver??

Pela primeira vez em largos anos António sorri… Respondendo…

--Gosto de viver… Mas não gosto de ver a vida da generalidade das pessoas… sabias, Francisco, que a maior parte das pessoas não tem sequer dinheiro para uma alimentação decente??

-- Não.. Não sabia.. Mas porque?? Se não tem dinheiro vão trabalhar…

António sorri pela segunda vez…

-- E se eu te disser que as pessoas de que te falo não tem essa possibilidade como te sentes? Feliz e com vontade de rir??

--Não…

--E se eu te disser que aquelas pessoas com quem convivo diariamente são totalmente insensíveis aos problemas de que te falo… Sabendo tu isto que te apetece fazer?? Rir??

Pela primeira vez em muito tempo Francisco adopta uma expressão pesada, incrédula… Sente que o mundo fantástico que imaginava viver afinal não é bem aquele que corresponde à realidade…

--Não… Mas porque é que as pessoas não acabam com todos esses problemas…

--Muitos porque se convenceram de que não vale a pena, outros porque a miséria de muitos garante a vida de luxúria em que vivem… Outros… Bem os outros não pensam em mais nada a não ser neles…

--Então e tu o que fazes pelos outros??

--O que eu faço pelos outros consiste naquilo que eu não faço…

--Ah? Como assim??

--É exactamente isso… No meu trabalho os melhores clientes são, em sua grande parte, pessoas cuja vida representa tudo aquilo que eu luto contra… Se esses fossem meus clientes eu sabia que estava a defender uma causa errada estaria a contribuir para a inocência de um corrupto assassino ou ladrão… Não o faço… Não ganho rios de dinheiro como aqueles colegas de trabalho… Não sou reconhecido… Não sou admirado na alta sociedade… E sabes porquê?? Porque faço aquilo que acredito penso ser o melhor para todos… Porque na verdade eu só faço o melhor para mim quando os outros, na pior das hipóteses não são penalizados…

--Ah e isso é como tu ajudas os outros??

--Sim… As pessoas tem a ideia errada de quem faz doações, é uma pessoa que ajuda os demais… Pois bem isso está errado…

--Como?

--Imagina o seguinte cenário… Uma empresa cheia de dinheiro pretende que eu os defenda em tribunal contra um conjunto de operários… Se eu conseguir ganhar o caso em questão, os operários são despedidos… Dezenas de famílias ficarão no desemprego… Se eu não o ajudar estou a contribuir para que ele perca e para que as famílias continuem o seu trabalho ou pelo menos que sejam devidamente indemnizadas… No primeiro caso eu seria chorudamente recompensado, teria dinheiro suficiente para depois, fazer uma doação às famílias, mesmo oferecendo todo o dinheiro recebido não iria ajudar em nada a situação financeira dos pobres operários… No segundo caso, optando por defender a causa dos operários eu não iria obter grandes lucros se é que iria obter alguns, no entanto as dezenas de pessoas iriam ter aquilo que merecem por direito…

-- Ah já entendo porque és triste tio…

--Pequeno Francisco não fiques triste… Tu és muito jovem para te preocupares com isto… Mas lembra-te de uma coisa… Se durante a tua vida não puderes ajudar ninguém certifica-te pelo menos que não os prejudicas… Lembra-te que ajudar os homens não é, em geral, ajudar a humanidade…

--Ok tio…

Francisco desatou a correr para o quarto… Francisco chorou como já não o fazia há anos…

7 comentários:

Rute Fernandes disse...

Seria bom se o simples facto do tio António recusar a proposta da empresa pudesse salvar os operários, mas a verdade é que por mais correcta que seja essa atitude, na prática traduzir-se-á na contratação de um outro advogado, menos sensível, mais humano (na real forma de ver o Homem e não a Humanidade)...
Foi uma oportuna crítica, que não deixa de ter um pouco de cada um de nós nela espelhada...

catarina disse...

Na verdade o Tio António pensa correctamente.Mas nem todos são um "tio António", nem todos se preocupam em ajudar os outros, nem todos fazem por pelo menos não prejudicar os outros.Somos todos elementos da mesma humanidade,mas uns têm mais direitos (ou julgam ter) que os outros.É triste...mas talvez a solução não será chorar como o jovem Francisco, mas sim lutarmos para termos um pouco de Tio António em nós,eu acho que já seria uma grande ajuda...

Rain disse...

WARNING: testamento coming through!
Bem, vou já dizer que acho que o António é um coitadinho, mas primeiro queria dizer que o texto está interessante, utópico mas interessante.

Tal como a nereida disse, na vida real o facto dele recusar a proposta de trabalho não faz nada. Ia agora dissertar sobre a reacção de alguns desempregados e achar que as pessoas têm medo de recomeçar a vida por não saber o que as espera e ficam ali a desejar que o tempo volte para trás em vez de olhar em frente, mas depois perdia-me e o texto não é sobre isso! ;)

Digo já que vou falar do "António" que li.. pode não ser o António de quem escreveu!
Sinceramente, o António em vez de advogado devia ser jornalista da TVI. Podia debitar todas as tragédias nacionais e globais, explicar como o governo não faz nada, como há cada vez mais gente na miséria, como o país está a arder em fogos de poder que ninguém quer controlar porque está tudo a ver se o Benfica se safa ou não. E porquê? Porque toda a gente sabe o que se passa e não vai entrar em depressão cada vez que alguém lhe lembra isso. Todos os dias temos o sr. António a sair pelas televisões, jornais, pessoas na rua... sinceramente, não acho que isso seja motivo de orgulho para ninguém. Eu sei que há gente a morrer, eu sei que há gente a passar fome. Melhor ainda, eu sei que a raça humana anda cá há muito (muito) tempo e que nunca se viveu tão bem e nunca se pôde ajudar tanta gente como agora. Sei também que somos sobreviventes milenares (de uma era glaciar e tudo), ainda cá estamos. Como ninguém é imortal nem podemos estar cá todos ao mesmo tempo, temos que aproveitar isto da melhor forma! Se o sr António acha que já ninguém se preocupa e que no tempo dele é que era, então que dê lugar ao sobrinho. Se alguém tem um sobrinho assim (futura geração optimista, inteligente e alegre) e está desiludido com a vida é porque precisa de repensar o que é que está aqui a fazer, se não ajuda, que não trave os outros.

Há gente má e gente boa, a boa notícia é que somos quase todos bons samaritanos. Se não acreditem, olhem à volta e contem o número de casas e o número de prisões. Há gente que vive feliz quase sem comida numas palhotas (vi um livro sobre uma tribo que me fascinou), há gente que nasce numa cama de ouro e é terrivelmente infeliz. Invariavelmente, depende de como se olha a coisa. O mundo tem coisas más, é verdade. Mas quem acha que isto está mal não se limita a deixar de defender alguém, deixar de defender um criminoso apaga o mal que ele causou? Fazer o mundo melhor é recolher o lixo todas as noites, é resistir à tentação de dar um nome a um bébé alheio enquanto o lava e cuida dele com todo o carinho até ser adoptado, é levar comida e vacinas às pessoas que precisam, é trazer para casa um cão abandonado, é ouvir alguém e enxugar-lhe as lágrimas, é cuidar para que as crianças se sintam amadas, é fazer voluntariado, é ter amigos, é sorrir, é sentir-se acarinhado pelas pessoas que o rodeiam e poder acarinhar as outras, é fazer acreditar que há razão para continuar a lutar. É fazer com que as outras pessoas se sintam bem, mostrar-lhes que há pessoas que gostam delas, que há motivo para viver e acreditar que podemos melhorar qualquer coisa e acender aquele calor interior de felicidade. Este calor não vem por não fazer nada, não vem por nos isolarmos do mundo, não vem por acharmos que está tudo errado tal um velho do restelo.
Agora podemos falar livremente, tivemos uma revolução porque o povo se uniu por uma causa comum: melhorar a vida de cada um deles e dos que vinham a seguir. Às vezes damos um passo para trás para conseguir andar para a frente, descobrimos primeiro os incêndios e depois os fornos... Precisamos de confiar uns nos outros, acreditar que o facto de me esforçar por ser feliz ajuda os outros a serem. Acreditar nos amigos e que todos juntos conseguimos criar um futuro melhor. Uma pessoa sozinha não faz nada, nem muda nada. As ideias precisam de apoiantes para se tornarem em realidade.

Há que acreditar no futuro, especialmente nas crianças. Depois de chegar a adulta, prezo mesmo muito os meus momentos de infinita alegria de ser criança, de viver num sonho, de acreditar no pai Natal. Não fiquei traumatizada quando soube que não existia e a minha época favorita continua a ser o Natal. As crianças de hoje crescem mais depressa e o sonho vai-se apagando cada vez mais cedo, não precisam que venha ninguém armado com "experiência da vida" e destrua algo tão lindo como isso. Se o Francisco fosse meu filho (lagarto, lagarto, lagarto), eu ia ajustar contas com esse sr. António! Fazer chorar uma criança por um disparate de um adulto que não tem alegria de viver e não sabe o papel dele neste mundo é estupidamente desnecessário.

Acabo (uff) com uma pergunta que ficou célebre numa telenovela e que vou adaptar livremente: "Quem é que matou a vida do António?" Atrevo-me a responder: ele próprio...

Balhau disse...

Antes de mais gostava de agradecer à rain o seu comentario... E devo dizer que fico muito feliz com a maneira que ela encara a vida...

Bem, e tens razão pois a palavra coitado é sinonimo de infeliz... E sim ele é profundamente infeliz pois passados largos anos de luta (eu mencionei no texto uma maneira de lutar) não se consegue abstrair de problemas profundos na sociedade. O texto é utópico?? Sim é verdade porque foi inventado por mim, e é provavel que no mundo não haja nenhum advogado António com este perfil. A situação que descrevi é utópica?? Não não é... Da mesma maneira que existem pessoas egoístas, inconscientes que não se importam se vir alguem a morrer de fome à frente. É verdade que não mencionei quais os problemas com que António se preocupava mas quando mencionei que existiam desempregados eu mencionei uma pequena percentagem, que existe, que não tem possibilidade de trabalhar, portanto não me estava a referir a desempregados com medo de recomeçar a vida, estava-me a referir a pessoas cujo país são subitamente bombardeados e ficam sem casa, ficam sem filhos, trabalho, e que por maior que seja o optimismo tem a noção de que os dias deles estão contados. O caso que descreveste não chega a ser sequer um problema porque esses tem a possibilidade de trabalhar... A história da tribo também é muito gira, e não é utópica, porque existem tribos no limiar da pobreza que vivem felizes, mas a grande generalidade dessas tribos vivem assim porque querem e não porque foram obrigados, mas nem é aí que está o problema, a diferença é que a pobre tribo tem um habitat, em que pode satisfazer as necessidades básicas alimentando-se, à base da caça e vestindo basicamente o que a terra lhes dá, uma população vítima de guerra não. É um pouco redutor comparar a TVI ao senhor antónio, ou vice versa, porque enquanto que a TVI faz reportagens para o sensionalismo e consequentemente arrecadar a auiência do pacóvio, o senhor antónio sofre em silêncio, porque não se consegue abstrair de problemas que a maior parte de nós não dá tanta importância. Tu sabes que ha gente a morrer e sabes que há muita gente a passar fome, portanto daí ja deves entender o sofrimento do antónio... É também verdade que nunca se viveu tão bem como hoje, tudo isso é verdade. Mas é uma verdade para uma pequena percentagem de gente, porque a que vive mal vive pior do que ontem. E é verdade somos sobreviventes milenares e vamos durar por muito mais tempo provavelmente. Mas isso não quer dizer que todos tenham tido a oportunidade de sobreviver. Devo dizer que a personagem António não é uma figura a servir de exmplo pois esta já se cansou de lutar por um mundo melhor e isto nós nunca o devemos fazer. A figura António serve para alertar uma pequena percentagem de gente que vive no mundo do fantástico para uma outra grande percentagem que vive no mundo da morte... Dizes que fazer o mundo melhor é:

Fazer o mundo melhor é recolher o lixo todas as noites, é resistir à tentação de dar um nome a um bébé alheio enquanto o lava e cuida dele com todo o carinho até ser adoptado, é levar comida e vacinas às pessoas que precisam, é trazer para casa um cão abandonado, é ouvir alguém e enxugar-lhe as lágrimas, é cuidar para que as crianças se sintam amadas, é fazer voluntariado, é ter amigos, é sorrir, é sentir-se acarinhado pelas pessoas que o rodeiam e poder acarinhar as outras, é fazer acreditar que há razão para continuar a lutar.

Só que há no mundo gente que já não consegue chorar porque o fez durante dias a fio porque certa bomba lhe levou o filho a mulher e o cão. Essas pessoas obviamente que não vão fazer voluntariado, quanto aos amigos a maior parte deles tiveram a mesma sorte da mulher e do filho e a razão que tem para continuar a lutar é a de que a água está imprópria para consumo e que q probabilidade de morrer é de 90%. A mensagem que tento passar com a personagem António não é de que devemos ficar todos deprimidos e deixar de lutar nada disso. Eu tento alertar para a sensibilidade das pessoas para que, sempre que possível, tentem lutar por um mundo melhor. Para que nao façam acreditar que coitados como o António não andam a sofrer sozinhos...
O facto de não existir Natal não é motivo de trauma, considerar isso um trauma...
Quanto às crianças eu acho que elas devem sonhar tal como nós, mas que sonhem solidamente... Que sonhem sonhos que pervaleçam uma vida.. Mas que esse sonho seja consciente e que saiba que o mundo está mal, vai continuar mal, mas que se convença, sabendo disto, que vale a pena lutar e sonhar... O choro do Francisco foi consequencia do fantastico em que vivia, porque se ele estivesse ciente da realidade não chorava...
Em resposta à:

Quem é que matou a vida do António?

Eu acabo o texto com o Antonio a sorrir.. Ele sorri, o sorriso é sinal de alegria e esperança, o "meu" António não morre...

E é sempre bom saber que a pergunta veio de uma telenovela...

obrigado pelos comentarios

;)

Balhau disse...

Ah so para que se conste eu sou feliz... Tenho muito tempo para ficar deprimido...
Muhahaha

Rain disse...

Primeiro ponto: eu não disse que o António morria (se reparares não foi isso que eu escrevi).

Segundo ponto: "também verdade que nunca se viveu tão bem como hoje, tudo isso é verdade. Mas é uma verdade para uma pequena percentagem de gente, porque a que vive mal vive pior do que ontem." Isto não é verdade. Primero porque a qualidade de vida tem vindo mesmo a aumentar (e não preciso de ir para a Idade Média - pq a liberdade religiosa e saber escrever tb contam - mas basta-me ir à I e II Guerra Mundiais), mesmo em África e outros países, 30 anos que é a media deles era a nossa não há muito tempo. E depois, desculpa lá, mas a percentagem de gente que vive na pobreza não é tão grande como tu queres fazer parecer, não é que não seja maior do que eu a queria, mas em números isso não é assim.

Terceiro ponto: "Mas que esse sonho seja consciente e que saiba que o mundo está mal, vai continuar mal". O mundo não está mal, mas isto é subjectivo. Apesar de tudo o que a evolução traz, a verdade é que eu acho que tem sido sempre a melhorar. Aliás, aqui há uns 50 anos não fazias ideia do que se passava no mundo, nem das injustiças cometidas. Aliás, nunca ias defender nada a não ser a tua família e a água do poço.

E por último, "O choro do Francisco foi consequencia do fantastico em que vivia, porque se ele estivesse ciente da realidade não chorava.." esta também não me parece verdade. O António sabe da "realidade" e passa os dias a chorar em silêncio, não é?... A realidade não é assim, mas claro, depende de como tu queiras olhar. Se quiseres olhar só para o negativo tens o António, se reparares que o mal anda acompanhado do bem, tens a realização de que há sempre pessoas boas e é nelas que vamos confiar o presente e o futuro.

Aurora disse...

Bem, gostei do "debate"... Confesso que também tenho tendência a ver as coisas mais pela positiva, e gostaria só de acrescentar que talvez nos devêssemos lembrar de tudo isso no nosso dia-a-dia, nas pequenas coisas em que nós (que afinal de contas somos privilegiados)podemos fazer para ajudar... Coisas tão simples como comprar produtos de "fair trade", mesmo que sejam mais caros...

De qualquer maneira, continuem a escrever e debater, que quanto mais se falar nestas coisas, melhor!