2008/01/14

Na noite

A noite acabrunha as sensações. O escuro da esquina anuncia a chegada do gelo nocturno. Está frio. Olhando em redor a única coisa que se consegue sentir é o cheiro húmido do rio que passeia monotonamente pelas serras circundantes. A presença da noite é habitualmente lembrada como um recolher de corpos, momento em que descansam as almas. Está vento. Um vento húmido, corpos massissos de ar empurram-me o corpo para trás, uma força invisível que me sustenta na vertical. Costumo fechar os olhos, gosto de sentir o severo das sensações, o beijo frio do ar na minha boca febril. São aproximadamente dez da noite. Nestes dias de inverno o sol despede-se cedo. O sono apodera-se de mim e passeia lado a lado com o entorpecimento do corpo. Sinto uma preguiça assustadora. É bom o frio. Ajuda a dizer não à inércia que nasce vinda do nada. Guardo sempre esta altura da noite para estar contigo, para relembrar o que fui contigo. Os passeios longos, vagarosos, como dias de verão que partilhei contigo. A cumplicidade, a sintonia no olhar, o sincronizado respirar. O frio ajuda. O fresco na cara faz com que te sinta, como uma mão que passa rente à pele tocando somente as pontas capilares. És como um estar virtutal. Na verdade nunca passaste disso. Nunca deixaste de ser o que eras, não sendo nada. Costumo vir até aqui, à beira do rio. O som da água veloz nas pedras inertes inspira um sentimento sinistro que a noite acaba por tornar aterrador. Eu gosto do som. Sento-me contigo em cima de uma pedra sombria e respiro todo o horror da noite. Transformo o terror inalado numa tranquilidade muda. Abandono-me por completo à viagem que a natureza nos proporciona. A sinfonia que presenciamos é de uma profundidade musical transcendente. O assobio do vento sobrepõe-se sobre o caminhar da água no rio. A percussão entra a meio do concerto sob forma de gotas de chuva. Mas ainda não está cá todo o grupo musical, faltam os trovões. O cenário não é realmente verdadeiro sem o ecoo dos trovões. Aquela voz grave de tenor, que anuncia a tragédia do dia. Todo o cenário é o mais puro contraste. O preto no branco. A diferença entre o bem e o mal. O mais concreto invisível. Eu irradiando uma felicidade ímpar, sentindo no colo o teu calor e nas costas o implacável frio da chuva. É raro estarmos os dois. Tu só apareces em dias de concerto e os trovões não gostam de actuar com grande frequência. Em nosso redor árvores centenárias abrigam-nos da vista curiosa da gentalha que acidentamente passa por ali. Somos como que abraçadas por estas entidades divinas da natureza. Gostava de falar Arvorez, olhar para o Castanheiro imponente e pedir-lhe que nos elevasse no ar. Ouvir melhor o cântico da chuva. Assistir na primeira fila à eterna representação teatral dos pássaros que voam invisíveis no ar, detectáveis unicamente devido ao seu chilrear característico. Gostava de falar com o vento. Pedia-lhe que nos levasse de pedra em pedra, de margem em margem. Com sorte o rio achava-nos graça e convidava-nos para passear com ele. Fazia-mos dos nossos sonhos uma canoa e iniciava-mos uma longa escalada rumo à nascente que lhe deu origem. Como eu gosto de me sentar contigo. Poder viver o mundo de uma maneira diferente. Viver sem existir. Sem ser eu. Viver e ser tudo o que sempre quis ser. Pular de sonho em sonho com a frequência do vento. Encarnar cada gota de chuva como uma diferente personagem. Ser pirata, ser cowboy, caçador de tesouros. Ser peregrino, alma penada. Ser mau, alma vingada. Ser bom, possuidor de um aviltante coração. Encantador, uma eterna tentação. Ao som da chuva sou tudo o que quero, ao frio do vento eu sinto a vida em mim. No teu calor eu sinto a esperança e a luz do dia...