Andávamos os dois perdidos. Como de costume vagueávamos sem rumo uma das ruas estreitas que vizinham a tua casa, esse lugar que nos confina um infinito de experiências. Andávamos a cantarolar uma música qualquer. Passeávamos ao som dos nossos próprios passos. Percorríamos juntos a cidade inteira. Esquadrinhamos tudo o que vimos. Em intervalos regulares olhávamos simultaneamente, inevitavelmente, o horizonte que nos apadrinhava de alegria. Viemos sem saber ao certo de onde, caminhando juntos sem saber para onde ir, com um único sentido, rumo maior, o manter forte aquele aperto de mão que sustenta este passeio, o cúmplice ladear de sentimentos.
Sinto hoje no cheiro da minha pele o movimento contíguo do meu sorriso no teu cabelo. Vejo ao acordar quadros abstractos, a pintura mural daquele gargalhar de contentamento. Vejo o teu movimento vagaroso enquanto te encostavas a mim, enquanto respiravas vida, enquanto absorvias a solidão que trazia comigo. Sinto no vestir da roupa o onírico de Mirró, sinto no actual passear solitário sobre as ruas desertas a capela sistina do teu sorriso aquele típico conclave de sentimentos. O misto constante, a nostalgia que aperta, a felicidade. Sinto a imponência que tem em mim aquele nosso esvoaçar aquele mergulhar sem destino, o rumo do desconhecido e o guiar com segurança dado pelo teu olhar, pela bússola que eras, astrolábio nas emoções que percorriam selvagemmente tudo o vivia em mim. Foste meu renascimento, tão escondido e meu és a minha história da arte, a bibliografia de Gombrich. Contemplo o trajecto que me leva a casa e vejo um dos cantos que era só nosso, com tanto de belo como de banal, sorvo cada lembrança gerada como se de uma poção mágica se tratasse, num constante haurir de rasgos nostálgicos viro costas e caminho. Retomo o rumo que me trouxe aqui. Retomo a solidão e a alegria, retomo a vereda que era. Sorrio em direcção ao sol, ilumino aquilo que sou, aquilo que me faz rir e me reflecte em ti, sinto o vento na cara e voo descansando a lembrança...